Depois que ficamos mais velhos algumas coisas curiosas têm acontecido conosco. Uma delas é a questão do sal. Faz uma semana que estamos sem sal, não é dieta, não é por motivo de saúde, o fato é que não conseguimos comprar o bendito sal. Eu chego da rua e ele me pergunta: comprou o sal? Não, esqueci, oh meu Deus. No dia seguinte ele sai e eu falo: não esquece do sal. Ele chega e eu pergunto: comprou o sal? Não, esqueci. E assim foram se ando os dias nessa repetição de Sísifo sem fim. Nossa comida tem sido temperada com míseros grãozinhos de sal que estamos racionando como em tempos de guerra, pois a julgar pela experiência dos últimos dias, não sabemos ainda quando teremos sal. Temos Papa, mas não temos sal. 6x6d4c
Vale dizer que faço lista sim senhor, e mesmo assim, o sal não vem, talvez porque meu inconsciente com seus misteriosos estratagemas já tenha entendido, assumido e deliberado que não é para comprar o sal. Assim, fatalmente ao ar os olhos pela lista não enxergo a palavra sal. Culpa do meu inconsciente que é muito mais inteligente e poderoso do que eu. Simplesmente, devo estar obedecendo suas ordens.
Se ainda fosse pó de café, seria compreensível nosso esquecimento involuntário. No último domingo na missa, o padre nos advertiu que na saída, como já é de costume, seriam distribuídos entre os fiéis, papeizinhos com os nomes de gêneros alimentícios para as cestas básicas. E deixou claro que nenhum fiel está autorizado a trapacear, se tirar o papelzinho do café tem que levar. Conclusão: todo mundo torcendo para tirar o papelzinho do sal.
Bem, voltando ao meu cotidiano, hoje a história do sal se repetiu. Ao chegar em casa, ele me perguntou com delicadeza: amorzinho, comprou o sal? E eu, já desolada, respondi, não, quero dizer, claro que não, evidente que não. Aí tive um surto, elevei a voz num gemido lancinante: Nãoooo consigo comprar este famigerado sal, e joguei pro alto as meias que estava recolhendo do varal, num drama ensaiado mais de brincadeira porque desde menina sou artista, e premiada com uma imbatível veia cômica de fazer a plateia chorar de tanto rir! Voaram meias pra todo lado, afinal, além de cômica sou mega melodramática.
Agora ele saiu, não antes de escutar meu clamor: compra o sal, pelo amor de Deus! Vamos ver se o sal vem. Se não vier, provavelmente iremos os dois ao geriatra/psiquiatra para ver se este caso de esquecimento é grave. O problema é que só nos esquecemos do sal. Nunca esquecemos do vinho nem da cerveja, e agora no tempo de frio, nunca esquecemos do conhaque. O negócio é só com o sal.
Misa Ferreira é autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia, Na casa de minha avó e Ópera da Galinhinha: Mariquinha quer cantar. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na Índia. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.